Refletindo sobre a afirmação, cada vez mais recorrente e acalorada, de que funk é cultura e deve ser reconhecido como tal, gostaria de fazer algumas considerações...
Baseando-se no conceito de que cultura engloba tudo aquilo que é produzido em uma sociedade, desde realizações materiais até valores e crenças, e é transmitido de geração em geração, funk é sim, uma manifestação cultural. Mas me incomoda o contundente esforço da mídia em atribuir ao funk o cunho de MOVIMENTO DE RESISTÊNCIA.
Em 2009 o funk foi reconhecido como movimento cultural através da Lei 5543....Mas se é CULTURAL, necessitaria INTERVENÇÃO PARLAMENTAR para SER RECONHECIDO? Isso me soa como uma imposição de ideias...e toda imposição de idéias me preocupa e assusta. O samba, a MPB, a bossa nova, o rock nacional, o jongo, a ciranda, e tantos outros estilos não precisaram de uma lei para legitimá-los como manifestação cultural, surgiram natural e espontaneamente e aos poucos foram tomando seu espaço na sociedade...curioso, não? Qual então o objetivo implícito nessa iniciativa? Afirmar o valor do funk, reconhecendo publicamente o movimento como cultural? Aí me vem outra questão...Decretar que alguma manifestação é cultural atribui mérito à mesma como algo que agrega valor para a sociedade?
Em muitas comunidades, principalmente no norte da África e Oriente Médio, é comum a secular prática da mutilação genital feminina até os dias atuais. Tal tradição, que faz parte da cultura dessas sociedades, vem sendo amplamente discutida em todo o mundo.“Não há nenhuma razão religiosa, de saúde ou de desenvolvimento para mutilar ou cortar qualquer menina ou mulher”, afirmou o secretário-geral da ONU, Ban Ki-moon, em comunicado. “Embora alguns argumentem que é uma ‘tradição’, devemos lembrar que a escravidão, as mortes por honra e outras práticas desumanas foram defendidas com o mesmo argumento”. Bradar o funk como se fosse a única alternativa cultural para um grupo socialmente excluído, sem tentar conscientizar e incentivar esse grupo a experimentar também outras formas de expressão cultural não seria uma forma de mutilar suas possibilidades, limitar pessoas, considerá-las inaptas a descobrir e experimentar outras vivências?
Os jovens das classes menos favorecidas hoje têm acesso à todo tipo de informação, através dos vários segmentos da mídia e pela internet, são parte desse mundo globalizado que oferece milhões de possibilidades. Então, não precisam se limitar a um único estilo nem depender de uma única forma de expressão para se manifestar perante a sociedade...O dito "movimento de resistência" quase sempre faz apologia ao sexo irresponsável, à banalização da mulher, muitas vezes até apologia ao crime. Então, afinal, a "resistência" tão citada pelos defensores da "causa", é contra o algoz (sociedade desigual, capitalismo, racismo, pobreza, falta de oportunidades, injustiça social), ou RESISTÊNCIA AO NOVO, À POSSIBILIDADE DE MUDANÇA, AOS NOVOS CONHECIMENTOS, ÀS OUTRAS EXPRESSÕES DE CULTURA E FORMAÇÃO DE NOVOS CONCEITOS?
Cerque pessoas, principalmente jovens em formação, em um reduto fechado, com um mix de batidão e pinceladas bem fortes de sensualidade e erotismo...diga que isso é um movimento de resistência, e, definitivamente, diga a essas pessoas que tudo o mais é careta, ou de uma elite que as oprime,ou que é inatingível... aí... Sim, você terá muitas gerações de funkeiros maravilhados com o seu poder de REPETIREM MODELOS, sem precisar descobrir, refletir, questionar nem mudar nada, E ACHAREM QUE ISSO É CULTURAL E REVOLUCIONÁRIO...Por outro lado, teremos cada vez menos pessoas contribuindo para as verdadeiras transformações sociais de que nosso país tanto necessita.
Temos hoje jovens tocando em orquestras e ganhando oportunidades para se qualificarem como músicos eruditos, oriundos de projetos de música como o do Morro Dona Marta. Jovens despontando no teatro nacional, que começaram em projetos como o Nós no Morro. Jovens de comunidades por todo o Brasil, encontrando novos caminhos a partir de experiências com diversas expressões culturais. Eles estão alargando seus horizontes, qualificando-se profissionalmente, muitos já vivendo de arte, atuando como agentes multiplicadores de cultura, participando realmente, de um movimento de RESISTÊNCIA, dizendo não à pobreza e a ao pressuposto de que a única oportunidade que têm de se manifestar culturalmente é em um baile de periferia...Se ouvem funk ou não, não importa...importa que eles NÃO tiveram no funk o limite de suas possibilidades, e não se renderam assim aos artifícios de uma velha sociedade que mantém os mesmos padrões de estratificação social, inovando somente na criação de mais estratégias para manter "cada um no seu quadrado" e fechando sempre as portas para a busca da verdadeira igualdade.
Referências:
